Penso na dramaticidade de caminhar em uma tempestade sem pressa. Todo mundo ao redor corre procurando abrigo, mas uma única figura caminha lentamente sentindo a água escorrer pelo rosto. Os outros nem reparam porque estão preocupados demais tentando se proteger da chuva. Ele também não repara nos outros, porque está concentrado demais na vida. Não na própria vida. Ele não pensa no trabalho ou na briga que teve essa manhã com a pessoa com quem se relaciona. Não pensa nas contas bancárias, nem nos prazos. Ele pensa em estar vivo. Simples.
Eu também penso às vezes.
Ontem fui fazer omelete e um pedaço da casca do ovo caiu junto no prato. Enfiei o dedo para puxar para fora aquele excerto e me peguei refletindo sobre como a clara trouxe a casca para dentro de si como se devesse ser protegida. Eu puxava a casca e a clara vinha junto. Uma coisa só. Mas a gema ficava parada, também envolta por uma membrana. “Um dia nós fomos assim”, falei pro meu namorado, “um dia nós fomos um ovo”. A diferença é que a gema contém todos os nutrientes necessários para formar a vida que sairá dela, enquanto nós precisamos parasitar as nossas mães.
Às vezes eu imagino que a Cinara teve depressão pós-parto e talvez durante também. Um dia eu perguntei se ela me queria e ela disse que sim, claro. Não senti firmeza. Do mesmo jeito que não senti quando perguntei se ela preferia que eu fosse mulher. Eu nasci cedo demais, mas ainda com vida e agora já se fazem 29 anos desde que recusei a mamar no peito da minha mãe. Ela me contou que nem mesmo a criança da vizinha quis seu leite e eu fico pensando em como ela deve ter se sentido rejeitada pelo próprio filho. Não sei se ela já me amava. Tem mãe que ama desde o feto, tem mãe que aprende a amar. Se minha mãe pudesse, teria me abortado?
É assim que eu penso na vida, quando o faço. Tem outras maneiras também, que acho um pouco mais divertidas, compreensíveis. Pode ser que você não se envolva com tudo que passou na minha cabeça olhando para o ovo. Mas vai entender o que se passou enquanto eu olhava para o céu, deitado na grama em silêncio, vendo o azul se misturar com a copa das árvores. Isso também é pensar na vida. Também é viver a vida.
Não quer dizer que é simples.
Quando eu estou deprimido eu não consigo admirar o céu porque ele fica sem cor. Eu não consigo prestar atenção em todos os instrumentos que tocam em uma música, porque eles se tornam um único ruído, uma sinfonia desesperadora. Não dá pra falar pra alguém deprimido simplesmente tentar, porque o que tá na cabeça dela são como nós enquanto um feto sugando tudo das nossas mães.
Tem gente que me faz pensar na vida, porque estar ao lado dessas pessoas me faz sentir a vida, como meu amigo Shisa. A gente fica parado em silêncio, mas ainda assim tudo tá fazendo sentido. Às vezes ele me faz perguntas difíceis tipo “como você sabe que ama alguém?”. Eu respondo coisas enormes e que devem fazer algum sentido, mas a verdade é que um “eu só sei”, basta. A gente só sabe.
No próximo ano quero viver e pensar na vida, deixando de lado os contratempos. Vou parasitar o mundo como fiz com minha mãe.
Parece msm q a gente entrou na sua cabeça. Gostei. Eu divago demais desse jeito :) legal o q vc escreveu
Caraca, que texto lindo, vulnerável, honesto! Enfim, cru hhahah Amei